terça-feira, 29 de novembro de 2011

Os condes de Lemos e a Cidade do Sol. O filósofo Tommaso Campanella, prisioneiro dos vice-reis galegos em Nápoles




Em agosto de 1599 foi descoberta e abortada na Calábria uma conspiração que visava acabar com o domínio espanhol na Itália meridional. Não foi essa a primeira nem a última vez que se produziu uma tentativa de sublevação nos territórios italianos sujeitos à coroa de Espanha. Em 1523, 1533, 1547 e 1585 já surgiram na Sicília e em Nápoles importantes movimentos insurrecionais. No século XVI, os domínios espanhóis na Itália não eram nenhum exemplo de bem-estar e bom governo. A rapacidade dos governantes, um sistema fiscal feroz e o estado de abandono da agricultura, a indústria e o comércio provocavam um descontentamento popular incessante.
  A desocupação e a miséria propiciaram um enorme incremento da delinquência e o banditismo, sobretudo no sul do país: já estava nos seus inícios a longa e lúgubre história das máfias de Nápoles, a Calábria e a Sicília. A isto sumavam-se as tropelias da Inquisição, introduzida pelas autoridades espanholas, e a violência exercida contra a população pelos terços imperiais, que criam ter tudo permitido na Itália.

Tommaso Campanella, pelo pintor calabrês Mike Arruzza

    Todas estas circunstâncias concorreram para alimentar a conjuração de 1599, entre cujos responsáveis figurava um personagem que chegaria a ser conhecido universalmente: o monge dominicano e filósofo Tommaso Campanella. Nascido em 1568 numa humilde família da vila calabresa de Stilo, Campanella dera desde muito novo mostras da sua poderosa capacidade intelectual. Influído pelo pensador reformista Bernardino Telesio, abandonou o seu convento e publicou uma obra, Philosophia sensibus demonstrata, que foi condenada pela Inquisição. Procurou refúgio em Florência e Pádua, proclamou a necessidade de uma profunda transformação social, política e religiosa e finalmente retornou à Calábria. Lá participou nos preparativos de uma insurreição que pretendia instaurar um regime republicano e igualitário nas terras submetidas à Espanha e talvez também no resto da Itália. A sublevação, cuidadosamente planificada, não chegou a estourar porque dois denunciantes delataram a existência do movimento às autoridades imperiais, que desataram uma repressão atroz. Muitos dos conjurados foram levados a Nápoles a bordo de quatro galés. Dois prisioneiros foram despedaçados vivos durante a travessia com o fim de aterrorizar os outros e forçá-los a confessar. Campanella eludiu a princípio a perseguição, mas foi apresado algum tempo depois quando tentava embarcar para a Sicília. Conduzido a Nápoles, foi torturado durante meses enquanto era julgado por sedição e heresia. Para evitar ser justiçado simulou ter enlouquecido (as leis da época não permitiam executar os dementes) e embora não alcançasse a iludir completamente os juízes, conseguiu ver comutada a pena capital pela prisão perpétua.

  Campanella passou no cárcere os seguintes vinte e seis anos. Durante esse tempo escreveu algumas das suas obras mais conhecidas, entre as quais sobressai A cidade do Sol, descrição de uma sociedade ideal considerada como um precedente do socialismo utópico, ao igual que a República de Platão e a Utopia de Thomas More. Há quem acredite que A cidade do Sol foi uma das fontes de inspiração das comunidades igualitárias criadas pelos missionários jesuítas entre os povos indígenas do Paraguai. Em todo o caso, a obra teve uma influência considerável no pensamento filosófico e político das seguintes centúrias. Outro dos seus livros é uma Apologia de Galiléu na qual defendeu os méritos do grande científico, perseguido na altura pela Inquisição, e avogou pelos direitos da ciência face à hegemonia do poder religioso. O filósofo acabou por saír do cárcere mercê à intercessão do papa Urbano VIII, mas teve que abandonar a Itália por estar um sobrinho seu implicado numa nova conjura contra o domínio espanhol. Viveu os seus últimos anos na França, onde foi muito bem acolhido pelo rei Luís XIII e o cardeal Richelieu, os quais não perderam a ocasião de favorecer um sábio já famoso em toda a Europa que era perseguido pelos seus adversários, os monarcas espanhóis.


Busto do conde Pedro Fernández de Castro em Monforte
  Que relação tem esta história com Monforte de Lemos? Pelo menos uma pouca. Quando Campanella e os seus companheiros organizavam o frustrado levantamento de 1599, a governação dos territórios espanhóis da Itália meridional estava em mãos de um monfortino, Fernando Ruiz de Castro, vice-rei de Nápoles e sexto conde de Lemos. Foi este personagem quem dirigiu a repressão contra os rebeldes calabreses e quem ordenou encarcerar o monge filósofo. Campanella permanecia em prisão quando o sétimo conde de Lemos, Pedro Fernandez de Castro Andrade e Portugal, passou a ser também vice-rei de Nápoles, em 1610. Apesar da sua conhecida afeição pelas letras (foi mecenas, como é bem sabido, de Cervantes, Góngora, Quevedo, Lope de Vega e os irmãos Argensola, entre outros), o conde monfortino não achou conveniente indultar o pensador, quem continuava preso quando Fernandez de Castro terminou o seu mandato na Itália em 1616. Quem sabe em quem estaria a pensar Tommaso Campanella quando escreveu estas palavras num poema composto na sua longa estada em prisão: Habitantes do mundo, volvei os olhos para a inteligência suprema e vereis o abaixamento a que vos reduziu a tirania brutal revestida com o belo manto da nobreza e o valor.


     Publicado originalmente no programa de atos das festas patronais de Monforte de Lemos, agosto 2004.

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